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quinta-feira, 10 de março de 2011

Paradoxo

Para muitos, a vida começa quando as cortinas do grande tablado se fecham e as luzes, todas, se apagam. É quando não há plateia que a obra de arte começa, envolta apenas ao princípio mesmo, sem a necessidade do meio e do fim.

Para que se preocupar com o meio se, para quem o vive, o basta simplesmente vivê-lo? Para que se atentar ao fim se no fim já não há o que viver? Que se reflita o começo, então, o verdadeiro paradoxo da existência. O que nasce já o faz pelos caminhos que levam a morte, porém, percorrendo-os através da vida.

Para essas pessoas, a vida é sempre um grande espetáculo. Vive-se o amor, o drama, a comédia, o trágico - a flor da pele... mas o que realmente importa é que se vive por inteiro, protagonizando a sua própria dor, a sua própria alegria. Na verdade, o sentimento não importa para essas pessoas, o que importa realmente é chamá-lo de seu e, assim, o encarar.

Para essas pessoas não há razões para deixar de fazê-lo. O que importa é o espinho da roseira na carne, fazendo sangrar, mas que, paradoxalmente, fazendo sentir a intensidade do aroma da rosa que acaricia as têmporas ao mesmo instante em que o seu toque macio, na pele, faz sangrar. (Ainda que sangue cênico) Muitas vezes, é na dor, no sangue, na morte que se encontra o sentido da vida. Não a toa, quando vivas, as flores carregam consigo o cheiro de morte!

Para essas pessoas, o sentir, o conceber, o perceber está na escuridão de um teatro abandonado e no eco de um cenário vazio. Não é preciso aparentar porque são os grandes expectadores de sua própria história. Não é preciso plateia: a obra se faz vista para quem é preciso enxergá-la. E só. Para que mais? Bastam-se a si mesmas.

Para essas pessoas ser ator de si é mais que representar, é atuar em causa própria, extinguindo-se de si a percepção do outro - que é um universo à parte. Atuar é agir em sua própria história, modificando roteiros, apontando novos direcionamentos, determinando fazer parte a quem se quer, sem falas.

Para essas pessoas, as respostas nunca foram tão importantes mesmo. As respostas limitam os questionamentos, versam sobre o desvendar dos mistérios que impulsionam o operar na vida. Com as cortinas fechadas, as luzes apagadas, um novo universo faz-se dentro de quem nascera para viver em si. À plateia, apenas as flores...

quarta-feira, 2 de março de 2011

O outro em mim

“Como é por dentro outra pessoa?” - uma vez questionou Fernando Pessoa. “A alma de outrem é outro universo”, respondeu ele, timidamente, debruçando o seu olhar sobre aquele ou aquela, a quem se quis...

Porque o outro... o outro é uma viagem sem volta, é o jogar-se de cabeça num penhasco em neblina; é o mergulhar-se no mar escuro e imenso, sem o medo de deixar-se levar por uma correnteza que nos imerge fundo, profundo...

Ah, o outro... adentrar o seu universo é tomá-lo para nós mesmos, por nós mesmos. É um arrepio sem frio, de uma pele quente, em chamas. É o badalar dos sinos de cristais, em cujos encontros racham incessantes, mas que assim o precisam para, dos cacos, a música tocar...

No outro, o enxergar dos sóis dançantes adiantes da menina dos olhos. O caminhar sobre a relva mítica do desconhecido, pairando leve sobre a trilha do sentir. O calar da razão sobre o grito do desejo...

O outro é o velejar por nuvens tempestivas, mornas e envolventes. É o amanhecer que adentra a janela, consumindo a intimidade daquele que desperta em vida. É o semear da luz que da escuridão brota...

Em cada poro dilatado, um universo novo, de novo, se cria no outro. É o vislumbrar nítido do sangue corrente em nossas veias; como corredeiras de vida, límpidas, que fazem a alma escorrer volúvel e fincar-se na vitalidade de quem, antes, fluiu em sua maré em forma amante...

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.”

(Fernando Pessoa em “Como é por dentro outra pessoa”)