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segunda-feira, 23 de maio de 2011

Reticências

Todo amanhecer é um pouco morte para quem sonha...
...mas todo o amanhecer também é um pouco vida para quem renasce!

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Os caminhos que nos levam a nós mesmos

Para àqueles que não perdem a oportunidade da assistir a um bom filme e que travam uma batalha quase homérica para se esquivar do roteiro comercial dos filmes de Hollywood, uma dica barata e super confortável é a Mostra Internacional de Cinema. Todas às quartas e sextas-feiras, às 22h, vai ao ar pela TV Cultura uma obra cinematográfica mais conceitual, artística e politizada que nos faz refletir a cada sequência.

Como uma aspirante a cinéfila, sempre que posso agendo comigo mesma uma sessão pipoca nas noites de sexta-feira. Dentre umas dessas, tive o privilégio de assistir ao longa “Armênia”, uma produção francesa de 2006 e dirigida pelo marselhês Robert Guédiguian. A obra conta a trama de Anna (Ariane Ascaride), uma médica cardiologista de sucesso que encara a vida com a mesma prática, racionalidade e frigidez que a sua profissão exige.

Sempre no controle da situação após a morte da mãe, Anna, ao lado de sua filha adolescente e de seu marido, acredita ser a única família de Barsam (Marcel Bluwal), seu pai. O cuidado é tamanho que o zelo por seu pai é quase materno! Mas o velho, de origem armênia, sabe exatamente como driblar o altruísmo de Anna para, assim, conduzir a sua vida e garantir-lhe o direito de escolher a morte que anseia ter.

Barsam sofre de uma grave doença cardíaca, mas ainda assim nega a passar por uma cirurgia de risco, conforme orientado pela médica. Ele, então, decide aproveitar os seus últimos momentos de vida em seu país natal, vivendo a sua cultura. Apenas tendo confabulado com a sua neta o seu desejo, o velho engaja-se numa aventura vital, obrigando Anna encontrá-lo em até sete dias na Armênia, país que nunca visitou.

À procura de seu pai, a médica então passa por aventuras e desventuras que transformarão para sempre a sua vida. Porque não se trata apenas de uma viagem internacional, na qual terá a oportunidade de conhecer uma nova cultura e novas pessoas, mas de um processo de interiorização em que terá a rara chance de adentrar num canto de si, onde guarda memórias encaixotadas do que, um dia, nunca deixou de ser.

Por meio do seu convívio com os armênios, Anna começa a conhecer a realidade de um país completamente diferente da França mercantil e capitalista que deixara para trás. Era uma Armênia ainda de luto, mas com força e amor suficientes para a sua reconstrução após o chamado “Genocídio Armênio”. Em meados de 1915, o país sofreu com a matança e a deportação forçada de milhares de pessoas de origem armênia que viviam no Império Otomano. A intenção? Apenas arruinar sua vida cultural, econômica e seu ambiente familiar, durante o governo dos chamados Jovens Turcos (1915 a 1917).

A partir de princípios comunistas, o seu povo passou a reiventar a sua organização e a fundar um novo estado de direito após o episódio. Um povo humilhado sim, mas mais unido que, ainda com as feridas abertas, soube reorganizar a sua sociedade sem nunca permitir que a desonra de seus inimigos turcos revigorasse por seu solo. Um patriotismo romântico, cuja raiz é a fonte eterna da força, da honra e da sensibilidade de quem conhece a si mesmo e não se corrompe por aquilo que não acredita.

Anna passa a vislumbrar cada personagem de sua saga pela busca de seu pai e, como criança, começa a aprender a reviver quem, um dia, já foi. Os caminhos que percorre, as histórias que conhece, os amigos que faz, tudo remete a uma viagem para a sua própria história, para a redescoberta da Anna que, um dia, deixou morrer para se tornar uma renomada e bem remunerada médica francesa.

Ainda em seu consultório, o seu velho pai, após questionamentos irrevogáveis, disse a filha que gostaria de ter ensinado a ela algumas coisinhas antes de partir, mas que falar agora já não adiantaria. A viagem, além de ser o ensejo de encontrar vida durante a espera da morte eminente, foi a grande lição do velho Barsam à sua filha, numa demonstração única de amor, respeito e dignidade por aquele que ainda vive a sua essência, a sua raiz.

Por meio dessa obra cinematográfica - singela sim, se levadas em conta as filmagens e a cenografia, mas de uma riqueza conceitual que incomoda – podemos perceber o quanto deixamos de ser quem somos para viver uma vida fulgaz, aparente, em que o que importa mesmo é o que os outros pensam e o que se faz perante esses mesmos outros, e não o que realmente somos e no que realmente acreditamos. Uma oportunidade que temos de viajar para dentro de nós mesmos e, feito Anna, percorrer caminhos que um dia negamos e deixamo-nos desviar: os caminhos que nos levam a nós mesmos!


Informações Técnicas

Título no Brasil: Armênia

Título Original: Le Voyage en Arménie

País de Origem: França

Gênero: Drama

Tempo de Duração: 125 minutos

Ano de Lançamento: 2006

Estréia no Brasil: 07/12/2007

Estúdio/Distrib.: Imovision