Para àqueles que não perdem a oportunidade da assistir a um bom filme e que travam uma batalha quase homérica para se esquivar do roteiro comercial dos filmes de Hollywood, uma dica barata e super confortável é a Mostra Internacional de Cinema. Todas às quartas e sextas-feiras, às 22h, vai ao ar pela TV Cultura uma obra cinematográfica mais conceitual, artística e politizada que nos faz refletir a cada sequência.
Como uma aspirante a cinéfila, sempre que posso agendo comigo mesma uma sessão pipoca nas noites de sexta-feira. Dentre umas dessas, tive o privilégio de assistir ao longa “Armênia”, uma produção francesa de 2006 e dirigida pelo marselhês Robert Guédiguian. A obra conta a trama de Anna (Ariane Ascaride), uma médica cardiologista de sucesso que encara a vida com a mesma prática, racionalidade e frigidez que a sua profissão exige.
Sempre no controle da situação após a morte da mãe, Anna, ao lado de sua filha adolescente e de seu marido, acredita ser a única família de Barsam (Marcel Bluwal), seu pai. O cuidado é tamanho que o zelo por seu pai é quase materno! Mas o velho, de origem armênia, sabe exatamente como driblar o altruísmo de Anna para, assim, conduzir a sua vida e garantir-lhe o direito de escolher a morte que anseia ter.
Barsam sofre de uma grave doença cardíaca, mas ainda assim nega a passar por uma cirurgia de risco, conforme orientado pela médica. Ele, então, decide aproveitar os seus últimos momentos de vida em seu país natal, vivendo a sua cultura. Apenas tendo confabulado com a sua neta o seu desejo, o velho engaja-se numa aventura vital, obrigando Anna encontrá-lo em até sete dias na Armênia, país que nunca visitou.
À procura de seu pai, a médica então passa por aventuras e desventuras que transformarão para sempre a sua vida. Porque não se trata apenas de uma viagem internacional, na qual terá a oportunidade de conhecer uma nova cultura e novas pessoas, mas de um processo de interiorização em que terá a rara chance de adentrar num canto de si, onde guarda memórias encaixotadas do que, um dia, nunca deixou de ser.
Por meio do seu convívio com os armênios, Anna começa a conhecer a realidade de um país completamente diferente da França mercantil e capitalista que deixara para trás. Era uma Armênia ainda de luto, mas com força e amor suficientes para a sua reconstrução após o chamado “Genocídio Armênio”. Em meados de 1915, o país sofreu com a matança e a deportação forçada de milhares de pessoas de origem armênia que viviam no Império Otomano. A intenção? Apenas arruinar sua vida cultural, econômica e seu ambiente familiar, durante o governo dos chamados Jovens Turcos (
A partir de princípios comunistas, o seu povo passou a reiventar a sua organização e a fundar um novo estado de direito após o episódio. Um povo humilhado sim, mas mais unido que, ainda com as feridas abertas, soube reorganizar a sua sociedade sem nunca permitir que a desonra de seus inimigos turcos revigorasse por seu solo. Um patriotismo romântico, cuja raiz é a fonte eterna da força, da honra e da sensibilidade de quem conhece a si mesmo e não se corrompe por aquilo que não acredita.
Anna passa a vislumbrar cada personagem de sua saga pela busca de seu pai e, como criança, começa a aprender a reviver quem, um dia, já foi. Os caminhos que percorre, as histórias que conhece, os amigos que faz, tudo remete a uma viagem para a sua própria história, para a redescoberta da Anna que, um dia, deixou morrer para se tornar uma renomada e bem remunerada médica francesa.
Ainda em seu consultório, o seu velho pai, após questionamentos irrevogáveis, disse a filha que gostaria de ter ensinado a ela algumas coisinhas antes de partir, mas que falar agora já não adiantaria. A viagem, além de ser o ensejo de encontrar vida durante a espera da morte eminente, foi a grande lição do velho Barsam à sua filha, numa demonstração única de amor, respeito e dignidade por aquele que ainda vive a sua essência, a sua raiz.
Por meio dessa obra cinematográfica - singela sim, se levadas em conta as filmagens e a cenografia, mas de uma riqueza conceitual que incomoda – podemos perceber o quanto deixamos de ser quem somos para viver uma vida fulgaz, aparente, em que o que importa mesmo é o que os outros pensam e o que se faz perante esses mesmos outros, e não o que realmente somos e no que realmente acreditamos. Uma oportunidade que temos de viajar para dentro de nós mesmos e, feito Anna, percorrer caminhos que um dia negamos e deixamo-nos desviar: os caminhos que nos levam a nós mesmos!
Informações Técnicas
Título no Brasil: Armênia
Título Original: Le Voyage en Arménie
País de Origem: França
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 125 minutos
Ano de Lançamento: 2006
Estréia no Brasil: 07/12/2007
Estúdio/Distrib.: Imovision
Direção: Robert Guédiguian
3 comentários:
Amigaaaaaa...você é the best!
Seu texto é uma delícia de ler. Realmente nos faz refletir sobre as questões da nossa vida e, tem um pitada de provocação a mudança do conformismo.
"Um patriotismo romântico, cuja raiz é a fonte eterna da força, da honra e da sensibilidade de quem conhece a si mesmo e não se corrompe por aquilo que não acredita". Frase digna de uma ótima escritora..rss. Sou sua fã nº4....pois sei que antes tem os papitos, o amore e a Fabia..rss.
I love my girlfriend
Amanda Cruz
Perdi a oportunidade, vi a chamada nos comerciais e confesso que não me atentei. Depois desta postagem, vou procurar o filme para assistir, mas já vi que não vai ser fácil achar para baixar, pra alugar então...
Um beijo outonal.
Sconosciuto.
Amanda, minha amiga amada!
Suas palavras me fazem um bem que nem sei explicitar com palavras!!!!
Obrigada por ser em minha vida quem é!
Querido Sconociuto, de repente você consegue na TV Cultura mesmo! Tenta!
Um beijo especial a vocês dois!
Outro a quem passa os olhos por aqui!
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